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1984 - George Orwell

Atualizado: 20 de fev.



A distopia que nos assombra

Uma distopia é caracterizada por uma sociedade imaginária controlada pelo Estado ou por outros meios extremos de opressão, criando condições de vida insuportáveis aos indivíduos. Normalmente tem como base a realidade da sociedade atual idealizada em condições extremas no futuro, seja ele próximo ou distante. Apesar de várias obras famosas do século XIX e XX serem baseadas em distopias, ela não pode ser considerada um gênero literário ou narrativo, e sim um universo da qual fazem partes inúmeros gêneros. Em geral, no universo distópico, as ideias de família, amor, religião, liberdade e amizade são reprimidas ou eliminadas.


1984 é, talvez, a distopia mais marcante do século XX. George Orwell, ou Eric Arthur Blair, seu nome de batismo, conseguiu retratar uma realidade idealizada que possui semelhanças assustadoras até hoje, e é por isso que o livro ainda faz tanto sucesso. Claro que devemos levar em consideração a história e personalidade do autor, sua crença num socialismo romântico, seu envolvimento com o comunismo, sua participação na guerra civil espanhola e sua decepção com o stalinismo. Sem conhecer um pouco desse histórico, não é possível compreender que tipo de mensagem ele queria, ou pelo imaginamos que ele queria, passar com o livro. De qualquer forma, ao terminar a leitura, minha impressão é que ele foi além de sua experiência, dado o caráter visceral e extremo de boa parte da obra.


A história se passa numa Inglaterra fictícia que fazia parte de um superestado chamado de Oceania. Ela englobava as Ilhas Britânicas, as Américas, o sul da África e a própria Oceania como conhecemos hoje. O mundo, segundo o livro, contava com mais dois superestados, a Eurásia (toda a Europa mais a Rússia) e a Lestásia (China, Coreia, Japão e mais alguns regiões a oeste da China). O resto do mundo, que consistia do norte da África, Oriente Médio, Índia e extremo oriente, era constantemente disputado pelos três superestados em guerras e conflitos recorrentes. A origem dessa configuração não é detalhada no livro, mas é possível concluir que uma grande guerra provocou tal mudança, com a ruptura total do sistema vigente anterior. Uma provável derivação da Segunda Guerra Mundial chamada de Revolução, que aboliu o capitalismo como sistema econômico.


A Oceania era controlada pelo que ele chamava de Partido, uma organização totalitária dividida entre o Núcleo, a elite controladora e privilegiada, e seus membros, os funcionários comuns. O resto da população, os proletas, como assim eram chamados, representavam cerca de 85% da população e viviam uma vida quase miserável, onde itens essenciais eram escassos e as ameaças de bombas eram constantes. O protagonista da história, o funcionário do partido chamado Winston, era uma espécie de encarnação do autor. Sua descrição pormenorizada da sujeira e da vida cotidiana, tanto dos membros do partido quanto dos proletas, lembra muito a passagem de Orwell pelo norte da Inglaterra (veja a resenha do livro "O Caminho de Wigan Pier"), onde ele havia sido contratado em janeiro de 1936 pelo editor britânico, e simpatizante das causas da esquerda, Victor Gollancz, para relatar a vida difícil dos mineradores daquela região.


O grau de controle que o Partido exercia sobre seus membros era quase total, com sua personificação glorificada e fortalecida através da figura do Grande Irmão, uma espécie de entidade onipotente que representava os ideais do estado totalitário - qualquer semelhança com Stálin não era mera coincidência. Visores com câmeras, chamados de teletelas no livro, estavam por toda parte, tanto nos escritórios do governo quanto nas ruas da cidade, que, no caso da história, era Londres. Os Ministérios tinham nomes que representavam, de maneira inversa, seu papel dentro do sistema. O Ministério do Amor, por exemplo, disseminava o ódio aos opositores e aos inimigos do Partido e da Oceania, e o Ministério da Paz era responsável pela guerra. Outros ministérios também tinham papeis inversos às suas designações, como o da Fartura e o da Verdade.


Winston, apesar de não se lembrar do mundo antes da Revolução, tinha curiosidade de saber como era a vida antes disso, mas, assim como todos os funcionários do Partido, vivia aterrorizado com a possibilidade de descobrirem o que pensava e ser eliminado. Mesmo assim, isso não o impedia de possuir a vontade de transgredir, mesmo que sutilmente, as rígidas regras impostas à vida de todos. Seu trabalho, seus pavores, seus sentimentos e suas reflexões dão o tom ao livro, o que torna a experiência da leitura uma espécie de imersão num mundo onde o passado era apagado e reescrito, a verdade era apenas aquilo que o Partido afirmava ser e a humanidade apenas uma lembrança a ser esquecida. Uma completa obliteração da liberdade em todos os níveis. A própria existência da realidade externa era tacitamente negada pela filosofia do Partido. Até a linguagem, chamada de Novilíngua, era uma estratégia para sublimar qualquer tipo de questionamento ou pensamento considerado subversivo - palavras eram eliminadas e novos significados eram dados para verbos e substantivos.


O que mais impacta na história, mesmo que ela seja uma obra de ficção elaborada por uma pessoa que viveu numa época onde o nazismo e o comunismo representavam uma realidade palpável, é sua similaridade com o que acontece hoje, mais de 70 anos após a publicação do livro. Além dos regimes totalitários conhecidos, como o da China, da Coreia do Norte, de Cuba e outros, onde a população é proibida não apenas de expressar sua opinião, como também de acessar informações fora do controle do governo, temos a ideologia do politicamente correto, ou progressismo. A cultura do cancelamento, a linguagem neutra e a tentativa de reescrever o passado abolindo referências a figuras históricas, ou mesmo demonizando-as, são assustadoramente similares ao esforço empreendido pelo Partido para neutralizar completamente o livre arbítrio. E, pasmem, assim como na ficção, justificadas pela ideia de um bem maior.


1984 é um livro que pode enviar mensagens equivocadas para quem o lê de maneira enviesada e isso, talvez, seja a explicação para o seu sucesso até hoje. Como antídoto para esses vieses, entendo ser importante vislumbrar o contexto social e político em que foi escrito e, mas ainda, entender o autor. George Orwell era um ativista, um homem que participou de uma guerra fora do seu país para defender uma ideologia que acreditava, mas que foi ferido em batalha e traído por pessoas que supostamente deveriam estar do mesmo lado que o seu. Um homem atormentado por uma doença no final de sua vida e que optou por viver em isolamento. Hoje é considerado um visionário, mas os regimes totalitários que conheceu, em especial o stalinista, influenciaram e ainda influenciam muitas ditaduras atuais. Algumas delas, infelizmente, surgiram na segunda metade do século passado e perduram até hoje.


Eu posso dizer, com tranquilidade, que 1984 é um livro obrigatório para todas as gerações atuais, uma quase história de terror onde o enredo encontra ecos na realidade em que vivemos. Uma distopia digna do nome, mas que poderia se tornar real a qualquer momento.




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