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A Treatise on Efficacy (Parte 3/3) - François Jullien

Atualizado: 24 de jan.



Um Tratado sobre Eficácia - Parte III

Como mencionado no final da segunda parte desta resenha, vamos começar com o entendimento da lógica da manipulação no pensamento chinês.

Para nós, ocidentais, o que se compreende como manipulação é extremamente pejorativo, dado que esta está associada com engano e dissimulação. Para o pensamento chinês, entretanto, não há escrúpulo em concebê-la como algo essencial no fluxo contínuo de um processo. Antes de imaginarmos isso como algo moralmente negativo, precisamos entender que, para os chineses, tudo se constitui num processo, incluindo o comportamento humano. Do seu ponto de vista, não há distinção entre o mundo e a consciência (ou a natureza e a vida interna do ser humano, as leis físicas e as leis morais, e assim por diante). A manipulação, nesse caso, se torna imperceptível.


A eficácia chinesa não consiste em agir contra ou a favor, lançando ataques ou se opondo a eles, mas simplesmente, dentro dos termos de um processo, em começar coisas ou interrompê-las (iniciando aquilo que é, à medida que se desenvolve, tende por conta própria ir na direção desejada; e interromper qualquer coisa, por menor que seja, mas já presente na situação, que pode fazer com que ela evolua de forma negativa). Como exemplifica o autor, um general manipula seu oponente para conduzi-lo a agir de acordo com sua vontade, mas induzindo-o a achar que está agindo livremente - você sempre poderá derrotar seu inimigo se começar a manipulá-lo antes dele tomar o primeiro passo. Por outro lado, a manipulação também pode ser utilizada como instrumento de opressão, dado que um déspota pode fazer com que seu povo acredite estar lutando por seus próprios interesses (seja por medo de uma punição quanto pelo desejo de recompensas), quando na verdade está apenas fortalecendo o poder opressor.


É importante destacar que a antiga China (aprox. 250 a.c.) era a China dos estados combatentes, época que durou de meados do século V a.C. até a unificação da China por Qin Shi Huang em 221 a.c. Naquele período, traições, conspirações e revoltas eram comuns, e cada palavra pronunciada era imediatamente suspeita. Ninguém se deixava enganar por profissões de moralidade, com certeza. Não havia crença em qualquer forma de transcendência que trouxesse retribuição ou punição, nenhuma ilusão quanto à existência de um além. A ambição era o guia e a força a medida de todas as coisas. A persuasão, assim, era deixada de lado, dado que esta envolvia um esforço, um esforço que era considerado falível. Se uma pessoa desconfiasse de alguém, ela simplesmente seguia seu caminho.


Por consequência, ao contrário do ocidente, na China pouca importância se dá aos procedimentos de argumentação, às figuras de retórica. Para os chineses, tudo depende de como o ouvinte está predisposto a ouvi-lo. Neste caso, assim como na guerra, você deve vencer antes mesmo de qualquer engajamento, antes do seu oponente começar a falar. Uma relação que envolva oratória é governada por uma manipulação estratégica. Você fala não para dizer algo ao outro, mas para fazê-lo falar (devemos levar em consideração que lá nunca houve uma democracia como no ocidente, e, portanto, o discurso sempre operou de maneira oblíqua, dado que era endereçado ao monarca e não ao público).


Como o autor conclui nos últimos dois capítulos do livro, uma boa forma de compreendermos a lógica do pensamento chinês é o uso da imagem da água. Os antigos pensadores chineses a tinham como a coisa mais próxima do Tao, O Caminho. Por sua infinita flexibilidade, forma não definida e fluxo constante, ela é um guia para o entendimento do conceito de imanência. Por se renovar constantemente e, fluindo de algum ponto invisível rio acima e nunca parando de prosseguir, a água representa eficácia. Podemos usar como exemplo uma pessoa que, ao se conformar a uma determinada condição, como a água no leito de um rio, se torna mais preparada para enfrentar as adversidades que encontra no caminho.


A imagem da água acumulada também nos ajuda a entender o conceito de potencial da situação, dado que, ao se acumular, ela concentra força, força essa que, concentrada num determinado ponto, pode superar um obstáculo mais forte. Mas é importante deixar claro que o potencial reside na situação, não em você, assim como a forma da água não está nela mesma, mas na configuração do terreno. Ser capaz de transformar a si mesmo em resposta às mudanças do seu adversário, de tal maneira a se obter a vitória, é alcançar a eficiência.


A água representa a imagem da variabilidade estratégica chinesa. Por não possuir uma forma constante, torna-se impossível construir um modelo. Por isso, em vez de construir uma teoria das formas, o pensamento chinês estabelece um sistema de diferenças. Em vez de buscar identificar características comuns que são mais ou menos fixas, mais ou menos estáveis, ele se propõe a explorar os limites das possibilidades de mudança. Para o bom estrategista, nada é mais perigoso do que ficar imobilizado num caso particular, e nada é pior do que fixar regras e imperativos sobre ele mesmo.


O pensamento europeu pode ser interpretado como uma história do acúmulo progressivo da auto consistência do indivíduo, que é a tendência mental que nós possuímos, como seres humanos, de acreditar que somos mais consistentes em nossas atitudes, crenças e opiniões do que verdadeiramente somos. Essa auto consistência é a base da nossa arrogância epistêmica, na nossa pretensão de moldar o mundo à nossa maneira. O pensamento chinês, ao contrário, nunca teve essa pretensão. Para os chineses, o que se faz e o que se pode fazer se sobrepõe ao que se pode fazer e o que se quer fazer. Não há uma vontade superior. O realmente interessa, e o que este pensamento se propõe a explicar, é justamente o não-combate, o não-enfrentamento, o não-acontecimento, ou seja, em suma, o ordinário.


Mas há um preço a pagar, afinal, e é um preço que, infelizmente, nenhum dos pensadores chineses, quaisquer que sejam suas tendências, parece jamais ter percebido. Enfrentar o mundo é uma forma de se libertar dele. Isso não apenas fornece a substância de histórias heroicas e júbilo para o indivíduo, mas, por meio da resistência, podemos abrir nosso caminho para a liberdade.






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