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Agonia - E. Ritt

Atualizado: 14 de jun.

"O amor começa como um sentimento, mas continuar é uma escolha. Eu me vejo escolhendo você, mais e mais a cada dia" Justin Wetch


Acordo, mas a sensação não foi a de um acordar. Tudo o que aconteceu foi um tomar consciência. Abro os olhos e tudo o que vejo é um campo branco. Sinto meus olhos e mais nada. Procuro minhas mãos, tento balbuciar algo. Nada! É como se meus olhos estivessem dentro de um saco de areia, inerte. Como se todos os músculos do meu corpo tivessem sumido. Ou melhor, como se não houvesse mais corpo, somente meus olhos. Abro e fecho. Vejo o branco e mais nada.


Movimento os olhos para a direita. Um olho dói. Bem no canto vejo o ângulo entre o teto e a parede. Reconheço o meu quarto. Quantas vezes observei este ângulo, em dias bons e dias ruins. Lembro de dias ali nesta cama, olhando para o teto e sofrendo. Mágoa. Uma mágoa ressentida. Mas em função do quê? Não consigo lembrar.


Sinto um embrulho no estômago. Pelo menos é mais que apenas sentir meus olhos. Me dou conta de meu torso, minhas entranhas e o teto branco.

— Estou em casa — penso — Mas por que não consigo sentir meu corpo?


Abro os olhos. Fecho. Tento abrir a boca. Nada. Os olhos andejam. Fora isto, nada mais. Nenhum movimento. Nenhuma lembrança! Branco!


Por quantos minutos eu fico andando com os olhos pelo teto branco e tentando entender aquela situação absurda, onde somente meu cérebro e olhos existem, e nada mais? Não sei precisar. Me pareceram horas. Monotonia, silêncio, branco. De vez em quando uma náusea me lembra que existe um estômago, mas a ânsia parece levitar no espaço, sem um corpo para levá-la a cabo e se livrar do que incomoda. Colocar o que quer que seja fora de um corpo que não parece existir, mas o rejeita.


Finalmente sinto o corpo, por uns segundos. E uma lembrança. Uma pessoa, um conceito, um sentimento. Primeiro vem uma onda morna, como se meu corpo entrasse em uma banheira e a espuma de um sentimento bom me preenche. Um rosto toma forma. Meu amor! Um misto de júbilo e esperança. Viagem, champagne. Mãos dadas, beijo na boca. Como um flash imagens passam. Eu e você. Uma casa e um bebê. Uma longa viagem, um quarto de hotel. Seu nome? Penso, penso, penso. Não tem nenhum nome. Tantas lembranças, tanto sentimento. Tem que ter um nome. Penso, penso, penso. Carlos? Eugênio? Marcos? Nada. Nenhum nome combina com o rosto. Nenhum nome ativa alguma lembrança a mais. OK, vou te chamar de você. O rosto volta. Teu rosto volta. Sorridente. Praia, mar. Uma pousada? Pele, sol, água que pinica. Desejo. Teu olho verde. E vejo teu olho verde crescendo. Ficando cada vez mais verde. Mais verde e mais longe, mais alheio, mais distante. Quase estranho. Quase desconhecido.


E no meu peito a exaltação vai se transformando em uma agonia atormentada. Teu rosto sumindo, teu rosto irritado. Olhar de repugnância, olhar de fastio. Teu rosto inerte e por fim indiferente. Uma indiferença ultrajante. Uma indiferença tão evidente que se torna chocante e agressiva. Olhos impacientes. Teus olhos longe. Não olham mais para mim. Te olho mas não me olhas. Se eu pudesse me mexer eu acenaria, mas não tenho como me mexer. Meus olhos se enchem de lágrimas. Lembro de um gosto amargo.


Sinto um gosto amargo. É real. Está no céu da minha boca. Você some e todo o meu foco vai para um ardor na minha garganta, um sentimento seco.


Remédios. Eu tomei alguma coisa. Agora me lembro. Álcool com certeza, mas algo mais. Será que foi aqui em casa? Não lembro. Penso, penso, penso. Farmácia? Casa? Banheiro? Nada! Tenho que lembrar onde foi. Por que tomei isto? Por que estou me sentindo tão mal. Alguém me deu o remédio? Eu o peguei? Tomei com água. Penso, penso, penso. A cabeça pulsa. Sinto um calor estranho e um torpor. Meus olhos fecham. Não durma, penso. Não está na hora.


Resolvo me focar no momento. Não há passado. Só fiapos dele e não é bom. Quero me distanciar. Sinto meu corpo, minhas mãos, meus membros inferiores por um lapso de tempo. O tempo de eu, num esforço hercúleo, erguer o corpo e vê-lo caindo ao chão. Meus olhos veem a lajota se aproximando e então o bege do piso bem próximo. Segundos depois o sangue vermelho que flui. Provavelmente do nariz, penso. Droga, quebrei o nariz!


De novo o corpo sumido. A realidade se distancia. De novo olhos dentro de um saco, ou dentro do nada. Meu corpo, um invólucro. Tanto faz. Me sinto exaurida. Um cansaço infinito.


Olhos, lajota e o sangue, que a propósito não mais fluía. Por quanto tempo fico ali, não sei precisar, mas sei que vou me tornando uma mancha ressecada. Algum tempo passou, acredito eu. Assim como o tempo passou para nós, que já não existíamos. Houve um "eu", depois "nós" e agora eu não queria o "eu" de novo, eu queria o "nós". Mas já não era mais possível. Será? Por quê? Penso, penso, penso. Nada!


Quem foi você? Parece ter sido importante. Mais importante que eu. Não, não pode e não deveria ser. Se não sei sequer teu nome. Mas sinto um amor. Um amor obeso, peguento, viscoso. Um amor maior que o meu próprio.


Teu rosto vem. Visível e nítido. Me vejo escolhendo você, que não mais me escolheu. A minha escolha não é a sua escolha. E não tenho nenhuma influência sobre isto, só uma sensação de debilidade, do imutável. Tomo consciência da escolha que fiz há algumas horas atrás de não aceitar este mundo sem "nós". Foi um escolha estúpida. Lembro de outros namorados, de grandes amigas, de bons momentos, de beijos na boca. Sinto vontade de sair correndo, de voltar para a casa da minha avó, de tomar chá verde vendo Netflix. Quero levantar, quero correr, sentir a água gelada no rosto, o mar nos meus pés, grama, cheiro da grama após a chuva. Lágrimas fluem, misturam-se com o sangue seco no piso.


Por um momento, sinto uma energia, ergo o corpo e caio de costas. De novo o branco eterno do teto, mas para quebrar a monotonia em um canto avisto a parte superior do batente da porta. Ok, penso. Uma certa evolução. Estou mais próxima da porta. Penso na porta, em me ver saindo por ela e encontrando amigos eternos, um filhote de cão, um pedaço de bolo de aniversário, meu celular. Me vejo em uma loja comprando um roupa nova. Me lembro que perdi um quilo e me imagino provando um biquíni novo. E de novo a água do mar por entre os dedos dos pés. A sola do pé em atrito com a areia molhada. Os dois se moldando um ao outro. Como poderia ter acontecido conosco. Em uma fusão. Lembro de um vidrinho de remédios. Eu tomo. Um, dois, vinte. Estúpido. Para quê? Para não mais sentir. Mas quero sentir. Tento gritar: Eu me amo! Não sai voz. Eu me amo, penso. Me amo e me amo! Só sai um espasmo, um grunhido abafado. As forças se esvaem.


Fecho os olhos. Me vejo viajando. Carreira, carro novo. Sozinha com as amigas num bar. Por que não pensei nisto antes? Por que não liguei para a minha melhor amiga? Para minha avó? Por que engoli estas pedrinhas sinistras que cruzaram minha vida? Por que não entendi o que ia acontecer de verdade? Por que só vi um caminho onde haviam muitos. Eu poderia ter escolhido qualquer um destes caminhos. A escolha era minha. E tantos caminhos parecem tão atraentes e nítidos agora quando há pouco não havia nenhum, mas apenas o seu. Um caminho onde a felicidade é terceirizada para um outro ser que não sou eu. E onde ignorei os outros mais de um bilhão de pessoas na terra que eventualmente pudessem assumir este papel, reduzindo tudo a um ser humano só. E agora sequer lembro o teu nome. O nome é importante. Penso, penso, penso.


Talvez eu tivesse sorrido de forma amarga se algum músculo cooperasse, mas não creio que tenha acontecido. De novo olhos sozinhos no mundo, perdidos. O tempo passa, branco, batente, branco, branco, batente.


Ouço vozes e chave na fechadura. Ouço o porteiro dizendo: —Aqui está ela, no chão.


Vejo o teto se aproximar. Alguém me ergue, penso. Os olhos pesam. Abro, fecho. Tento dizer algo. Quero dizer que eu me amo. Quero dizer que o amor por mim mesma é o maior de todos. É o meu amor pelo mar, pelo meu corpo. Quero dizer que não quero estas pedrinhas em meu estômago. Me levem para a praia. Consigo ver uma onda se aproximar. Longe ouço o som de uma sirene. Será uma ambulância? Branco!


Ouço o porteiro dizendo: — Ainda bem que ela deixa uma chave conosco. Assim que ela ligou chamamos vocês.


Sinto um cheiro estéril. Químico. Médicos? SAMU? Os meus olhos ardem. Sinto um peso no corpo. Alguém está me batendo. Sinto algo metálico no rosto. Algo como uma brisa fria. Ar. Sinto frio, muito frio. Vejo neve. Branco, branco, branco. Penso, penso, penso. Como era mesmo o nome do bebê?


Fecho os olhos para sempre. A escolha foi feita e não era a certa. Não era o que eu queria. Entendo a escolha certa. Eu me amo. Mas a escolha não estava mais disponível.




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