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Foto do escritorDiana Finkler

Da Amazônia para o mundo


Originalmente nativa da Amazônia, a Hevea brasiliensis, popularmente conhecida como seringueira, é a árvore que produz, naturalmente, o látex. Quando coagulado, o látex resulta na borracha natural, chamada e classificada, pela norma ASTM D 2000, de natural rubber (NR), e de tipo AA, que é recomendada para exposições até 70° C. A NR é mundialmente utilizada no mercado de pneus e amplamente conhecida por suas excelentes propriedades mecânicas. Neste artigo, vamos contar uma história interessante, que ocorreu no Acre, e que trata da nova tecnologia de fabricação de NR, realizada por famílias locais, em meio à Floresta Amazônica, sob a supervisão de renomado pesquisador da UNB e que se destacou nacionalmente, devido à produção de uma borracha de alta qualidade, atingindo especificações de classe mundial.


@dianafinkler | 16.05.2021


Fazendo um breve resgate histórico, a borracha natural foi uma das grandes responsáveis pela colonização da região Norte do Brasil, no século XX, e fez parte da história brasileira, nos chamados Primeiro e Segundo Ciclo da Borracha. Como é amplamente sabido, mesmo sendo um produto nacional, desde 1912, a produção sofreu um forte declínio, passando a acontecer predominantemente na Ásia.


Em média, o Brasil produz cerca de 140 mil toneladas ao ano e, mesmo que ainda disponha de baixíssimo volume de políticas públicas que promovam o crescimento da produção de NR no Brasil, ela é um material que devemos sempre estar atentos, dada sua importância estratégica em termos de volume de consumo global, que ultrapassa a marca de 14 milhões de toneladas ao ano.




Do ponto de vista de polímeros, por ser um material de origem renovável, faz todo sentido que sua tendência de uso seja de ascensão, ainda mais considerando o potencial de aplicação de novas tecnologia habilitadoras, que estão chegando ao mercado cada vez mais rápidas e poderão ampliar diversos de seus limites de especificação, como, por exemplo, a temperatura, atualmente limitada a 70° C. Exemplos de novos materiais, que irão agregar propriedades com características de dimensões nano, materiais avançados e de fronteira e oriundos da biotecnologia.


O látex natural extraído é composto por diversos materiais, como proteínas, fosfolipídios, lutóides e, principalmente, de poli hidrocarbonetos, presentes em uma emulsão de partículas coloidais polidispersas suspensas em um meio aquoso. O hidrocarboneto presente no látex é o isopreno (C5H8), encontrado, predominantemente, na configuração 1,4-cis-poliisopreno e, pouco, na configuração 1,4-trans-poliisopreno.

Neste artigo, quero dividir um trabalho muito interessante, o qual operacionalizei nos anos de 1999 a 2001, liderada e inspirada por minha mãe, Tânia Finkler. Ela, com sua grande experiência em borracha, visitou uma região potencial produtora de NR no Acre, a convite do governo local e da Universidade de Brasília (UNB). Neste tempo, eu ainda estava cursando o Técnico em Química, na Fundação Liberato, em Novo Hamburgo (RS), e, apesar de estar apenas iniciando na carreira química, tenho este trabalho como um dos que que mais me trouxe background até hoje, não só pelos desafios técnicos enfrentados, mas, principalmente, pelos desafios logísticos impostos pela floresta e pelos paradigmas de poder ocorrer uma produção familiar sustentável.




PRIMEIRO CONJUNTO DE DESAFIOS



Muitas pessoas não sabem, mas, além de seu uso nos pneus, a borracha natural é utilizada para fabricação das chamadas buchas de borrachas dos amortecedores de automóveis. São elas, as buchinhas, que garantem aquele conforto e durabilidade em veículos, critérios de suma importância quando você adquire um carro ou moto.


Para chegarem ao mercado, assim como os pneus, as buchas passam por rigorosos testes de resistência, química e mecânica. Dentre os testes mecânicos, os mais rigorosos são os chamados testes dinâmicos, que simulam a aplicação do produto em um veículo e, em média, exigem das buchinhas que sejam submetidas a ciclagens de resistência de durabilidade superiores a um milhão de ciclos, sobre uma alta frequência e deformação e que, ao final, mantenham suas especificações muito próximas às originais.


Uma formulação química para esta aplicação tem em média vinte ingredientes e, é lógico, que a borracha natural é o principal deles, pois, além de ser utilizada em grande quantidade, é a maior responsável pelas propriedades mecânicas. E, neste caso, o que pesa é a escolha da fonte e da especificação da borracha natural. Acrescenta-se a isso, que, tanto a formulação química, quanto as etapas para a fabricação de uma bucha amortecedora, são tão complexas quanto as de um pneu.


O primeiro conjunto de desafios envolvia desenvolver a formulação e suas matérias-primas, que, além de serem aprovadas nos testes, precisavam, obrigatoriamente, ser economicamente viáveis e industrialmente escaláveis para os volumes do mercado automotivo. Também, era necessário desenvolver localmente os testes dinâmicos exclusivos para os produtos, os ferramentais, o maquinário de produção e, por último, mas muito importante, fazer o treinamento de todos os colaboradores envolvidos na operação.


Imagem do esquema de montagem dos atuadores hidráulicos – simulando veículo.



Utilizando as ferramentas de APQP*, FMEA*, CEP*, MAS* e PPAP*, de acordo com as diretrizes do IATF recomendadas pelo mercado automotivo, e o que chamaríamos hoje de lean startup, na busca para vencer os desafios tecnológicos, foram gerados cerca de três mini protótipos viáveis (MVPS), até se atingir o tão esperado resultado de aprovação. A imagem a seguir demostra os gráficos de testes, do antes e do depois (a histerese inicial e final), após um milhão de ciclos, bem como as fotos dos produtos, que estão “intactos”, mesmo após a longa ciclagem.

*Vide Manual IATF

Imagem dos testes dinâmicos antes e depois, e dos produtos, após a ciclagem.


Milhões de buchas de borracha natural circulam a mais de vinte anos no mercado brasileiro, frutos desta tecnologia. O Brasil nunca dependeu de tecnologia estrangeira para produzir este tipo de produto, ao contrário disso, as homologações eram realizadas pelas empresas consumidoras fora do país, que certificavam os produtos brasileiros, inclusive para exportação.


Sendo o coração do trabalho relacionado à qualidade da borracha natural, evidentemente, era nela que sempre estavam concentrados os nossos esforços e constantes estudos sobre o tema.


Tradicionalmente, eu sempre trabalhei com o material chamado RRS1, abreviatura de Rubber Smoked Sheet, um tipo de “folha fumada de borracha”, que era importada da Ásia. As principais caraterísticas da RSS1 são a sua limpeza, a não presença de fungos e a sua alta resistência mecânica, devido à coagulação em processo de folhas.


Na época, e até hoje, no Brasil, nem experimentalmente e nem comercialmente, era possível se encontrar algum tipo de contratipo da RSS1, apenas borrachas do tipo GEB (1 a 3), chamado granulado escuro brasileiro, e do tipo CCB (1 a 3), chamado crepe claro brasileiro. As GEBs e as CRBs sempre foram borrachas de boa qualidade, porém, não eram adequadas para as altíssimas exigências de especificações mecânicas das buchas de amortecedor.


Imagem de dois tipos de borracha natural produzidos no Brasil



Mesmo assim, minha mãe aconselhava constantemente para que eu testasse, em laboratório, as GEBs e a CRBs brasileiras, na esperança de, em algum momento, conseguir utilizar o produto nacional, caso houvesse melhorias. E sempre indagava: - Por que não buscar tecnologias nacionais para substituir a RSS1, alguém na academia deve estar fazendo isso?


Foi quando ela apareceu com o segundo conjunto de desafios...




SEGUNDO CONJUNTO DE DESAFIOS:


Participando de feiras e eventos do setor, ela teve oportunidade de conhecer o projeto Tecnologia para Produção de Borracha e Artefatos na Amazônia (TECBOR), desenvolvido pela Universidade de Brasília, que tratava do desenvolvimento da folha defumada liquida (FDL). Nascia, então, a primeira oportunidade de ter uma borracha natural apta para uso nos amortecedores.


Fonte: Oficina sobre Mercados para Bens e Serviços Ambientais na Amazônia.

Paconé (MT). Abril / 2005.



Na sequência, iniciamos a realização dos testes comparativos com os materiais importados. Já nos testes preliminares, a FDL respondeu com resultados positivos e, depois de tudo realizado, conforme as diretrizes da ASTM, testes como dureza, tensão de ruptura e alongamento apresentavam resultados superiores aos da RSS1 importada e disponível no mercado.


Assim, quando colocada em testes dinâmicos, não foi surpresa a resposta positiva. Não havia dúvida que o Brasil tinha, então, uma borracha de alta performance.


Como o produto FDL ainda era de teste, nenhuma peça/bucha comercial foi produzida utilizando o material, sendo todo o lote destinado apenas para testes.


Na sequência, identificamos pontos de melhorias técnicas necessárias na FDL, as quais apontamos para a equipe da UNB, sendo a principal delas, a de vencer a propagação de fungos nas folhas. Estendemos a compra de mais dois lotes industriais, visando avaliar as melhorias e impactar socialmente as famílias envolvidas.


Imagem do segundo lote recebido de FDL para testes.


Os dois novos lotes já demostravam sinal de aperfeiçoamento e a equipe da UNB estava na busca por formas de viabilizar o projeto industrialmente. Nossa recomendação foi pela busca de parcerias no mercado de pneumáticos, já que estes são os grandes consumidores em alta escala e trariam viabilidade global ao negócio.


DESAFIOS DE HOJE E DO FUTURO:



Eu e minha mãe nos mantemos entusiastas do assunto e, por isso, fiz questão de escrever sobre, na intenção de mantê-lo vivo em nossa mente e para divulgar às pessoas que nunca tenham ouvido falar sobre o tema. A última notícia que tivemos foi sobre a interrupção das pesquisas, pela equipe criadora.


Quem sabe, um dia, poderemos ver esse processo implementado em fluxo contínuo, desde a floresta, até as grandes empresas de pneus, afinal, a partir das validações em buchas, já sabemos que tecnicamente é possível. E quem sabe poderemos ver o Brasil, que é o berço das seringueiras, onde o primeiro látex foi extraído, se tornar novamente um player neste mercado.


Todos sabemos que, quando algo é criado no mercado químico, podem levar anos para que o assunto decole no mercado, ainda mais se falando de produtos que envolvam segurança, como os pneus.


Mesmo ainda necessitando de amadurecimento tecnológico, o projeto TECBOR, até onde chegou, impactou, de forma transformadora, diversas famílias da região Norte do Brasil, gerando a formação de mão de obra local, treinamentos na floresta, envolvimento com o mercado consumidor, integração de famílias da floresta com o mercado e integração de Norte ao Sul do país.


Deixamos para os leitores algumas reflexões:


  • Quem sabe novas iniciativas que minimizem as adversidades logísticas tornem o projeto TECBOR viável?

  • Quem sabe as novas tecnologias em materiais resolvam as dificuldades de fungos do material?

  • Quem sabe políticas públicas incentivem a produção nacional?

  • Quem sabe o Brasil possa retornar sua posição como player mundial?


Espero que, a partir desta história e sua reflexão, novas motivações e ideias possam surgir, gerando novos modelos de negócios e, quem sabe, até um novo produto, sustentável e NATURALMENTE BOM.



Beijos cheios de Moléculas Valiosas

@dianafinkler


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