O rastelo foi arremessado contra a parede, batendo com força na madeira puída antes de cair em cima das teias de aranha. Do outro lado, o artesão chorou. Segurava o rosto entre as mãos, a barba manchada de argila e o monolito de mármore o encarando, ainda intocado. Era mais uma noite em que ele havia falhado. Mais uma noite em um vilarejo cujo nome se perdera, mais um fracasso em sua coleção.
Zael, o artesão, se levantou. Ficou de pé com um cambaleio, e fitou o bloco de mármore. O silêncio crescia entre os dois, do homem de rosto fechado à pedra que não ousava responder.
Nem quando o soco a acertou.
Zael tinha os dentes rangidos, e gritou. Gritou contra os deuses, pelo talento que havia o abandonado. Mesmo assim, o mármore não respondeu, zombando de forma enfurecedora. O homem pegou suas ferramentas e começou a esmurrar a rocha, lascas e saliva voando no quarto escuro. Que maldita fosse aquela rocha, que maldito fosse ele próprio e que maldito fosse aquele ato.
E maldito ele fora.
Pois, ao acordar de seu descontrole, Zael ergueu os olhos e encontrou sua magnum opus. Uma mulher, uma figura feminina, a mais bela das belas. Os deuses haviam o abençoado em sua fúria, injetando nela alguns instantes de compreensão transcendente. Porque aquela figura era perfeita, de suas curvas mais graves até as mais agudas, dos detalhes e do tudo. Indescritível, e nem mesmo Zael também encontrou palavras, desnorteado como um adolescente em seu primeiro amor.
A mulher, presumivelmente, fez seu justo sucesso entre os habitantes da vila. Todos ficaram embasbacados perante a estátua, e parabenizavam o artesão por seu trabalho magnífico. Zael, contudo, não escutava os elogios. Tinha a atenção somente na mulher de rocha, que não saía de sua cabeça nem mesmo quando ele desviava o rosto.
Naquela noite, sozinho em seus lençóis, ele pediu inocentemente aos mesmos deuses mais uma graça. Um pedido tolo, um pensamento posterior que o assombrava desde que a figura se completou. Queria que a escultura pudesse responder aos seus toques, sentir o que sentia, amá-lo como ele a amava. Pedira pela vida.
Até hoje, não se sabe qual deus exilado o ouviu. Contudo, no dia seguinte, Zael encontrou a escultura ao seu lado na cama. A mulher não piscava, mas praticava o impossível. Com um movimento duro, estendeu seu braço frio para acariciá-lo no rosto. Era fria, mas era real. O artesão chorou, ao ponto em que, na face de mármore, não havia expressão.
Fora o bastante. Zael não tinha mais olhos para outra coisa senão a amada. Se tornou recluso, vivendo de suas sobras, sem nem perceber que definhava a cada dia. Seus amigos ficaram preocupados. Certa vez, foram até sua casa, onde o encontraram dormindo. Por sorte, estava sem a escultura. Zael acordou e expulsou os companheiros de sua casa, temendo que descobrissem seu segredo. Ofegante, foi até a mulher de pedra e lhe deu uma ordem. Proteja-se, ele disse. Caso alguém venha buscá-la além de mim, proteja-se.
Os meses se passaram sem mais nenhum incidente, até que dois rapazes, saindo de uma noite de vinhos, decidiram passar na casa do excêntrico do vilarejo. Não havia lua no céu quando eles se infiltraram no casebre, encontrando a escultura na cama, ao lado do artesão. Riram e decidiram mover a obra, uma piada em formação. Do jeito que fora ordenada, a mulher se defendeu, e os dois infelizes rapazes encontraram sua morte. Sangue vermelho manchava o mármore branco, e um pedaço do perfeito braço da escultura se encontrava partido no chão.
Zael, quando viu aquilo, se desesperou. Olhou para sua obra-prima, agora imperfeita, e temeu que a perdesse para sempre. Reuniu tudo que lhe restava, cobrando de todos os amigos que conhecia, e comprou blocos e blocos de mármore.
Voltou a trabalhar, criando cópias de sua amada figura. Eram cópias imperfeitas, por mais que os erros fossem mínimos, mas se espalharam rapidamente, a ponto de não conseguirem sequer ser contidas dentro do casebre. Foram colocadas no jardim, e todas receberam a mesma ordem de se proteger. Zael permaneceu entre suas quatro paredes, sempre carregando o braço quebrado da original, de modo a guardá-la sempre perto de si.
Ora, era apenas uma questão de tempo para que as ondas do caos inundassem o vilarejo. Seria um garoto perdido que sem querer caiu em cima de uma das estátuas? Ou dois amantes, ansiosos em perpetuar seu amor no mármore amaldiçoado? Não se sabe, mas bastara apenas uma das estátuas se movendo para que toda a vila soubesse e se aterrorizasse. Os desesperados puxaram as armas que conseguiram recolher, temendo a rocha branca, que reagiu. A batalha estourou, enchendo de branco e vermelho as ruas estreitas.
No meio da confusão, o artesão temeu pela original. Procurou-a, desesperado, e a encontrou entre dois homens armados com espada. Pôs-se diante deles, e seu próprio braço pagou o preço pela bravata. Zael desmaiou com o sangue perdido, caído entre os destroços de sua original.
Quando voltou a acordar, o vilarejo estava silencioso. Apenas as estátuas estavam de pé, muitas com feridas e membros faltando, mas eram as vitoriosas. Haviam expulsado os sobreviventes. Contudo, nem todas conseguiam se levantar. A original, a única que um dia fora perfeita, estava em pedaços. Zael viu aquilo e se desesperou, esquecendo momentaneamente de suas próprias perdas até que a dor do braço perdido o acordasse. Olhou para o cotoco, e uma ideia veio em sua mente.
Recolheu os maiores pedaços da original e voltou ao casebre onde tudo começara. Fitou os membros brancos que havia conseguido recolher, e olhou para seu corpo de carne. Seremos um, pensara para si próprio antes de enfiar o braço despedaçado em seu próprio cotoco. Dizem que os gritos foram ouvidos pelos refugiados que ainda fugiam, e se estenderam pela noite até que o silêncio preencheu o que agora é conhecido como Vila de Mármore.
E nenhum dos habitantes jamais voltou para reclamar o nome original.
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