Uma reflexão sobre a alma humana
Machado de Assis dispensa apresentações. Uma das figuras mais importantes da nossa literatura, ele publicou, ao longo de mais de 40 anos, vários romances, contos, crônicas, poemas e peças de teatro. Sua obra captura como poucas a história brasileira, ao mesmo tempo em que explora a profundidade psicológica das situações e dos personagens que cria.
O Espelho é um conto que reflete essas características, e se você ainda não leu ou releu Machado de Assis com atenção, ficará encantando com sua capacidade e talento de capturar o leitor e fazê-lo mergulhar na narrativa.
Num Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX, mais especificamente numa casa no morro de Santa Teresa, cinco amigos conversam a respeito de temas transcendentais e problemas do universo. Ao caírem no tópico sobre a natureza da alma humana, a conversa divide radicalmente os amigos, pois cada um tinha uma opinião diferente acerca do assunto. O mais calado, um tipo astuto e ácido conhecido como Jacobina, que somente ouvia a discussão até então, é instado a dar alguma opinião a respeito.
Sem perder tempo, mas pedindo aos demais que o ouvissem calados, ele afirma que toda pessoa possui duas almas: uma que olha de dentro para fora e outra que olha de fora para dentro. Esta última, a exterior, tinha como objetivo transmitir a vida, assim como a primeira, mas podia ser representada, segundo ele, por qualquer coisa material ou imaterial, animada ou inanimada. Uma alma que até poderia ser mutável, mas que não poderia ser dissociada da primeira sob o risco de fazer perder a própria existência.
Sob os olhares atentos dos amigos, ele começa a narrar um caso de sua própria vida para usar de exemplo para sua argumentação. A partir daí, podemos dizer que temos uma história dentro de uma história.
Aos 25 anos é nomeado alferes (antigo posto militar logo abaixo de tenente) da Guarda Nacional, e por ser de origem bem humilde, sua nomeação torna-se um acontecimento e tanto para sua família. Na esteira desse evento, é convidado por uma tia que morava num sítio no interior da província para passar uns dias com ela. Extremamente bajulado e tratado apenas como o "senhor alferes", ele passa a receber todos os mimos que alguém poderia ter. O entusiasmo se torna tão grande que mandam colocar um espelho ricamente ornamentado no seu quarto, uma peça tão bela e magnífica que destoava significativamente da simplicidade do resto da casa.
Com tantas regalias e tratamentos diferenciados, a patente de alferes passa a se confundir com sua própria natureza, tornando-se alma e consciência do homem que, aos poucos, ia desaparecendo naquele turbilhão de reverências. Em algumas semanas, a única parte que restava de sua pessoa passa ser apenas aquela relacionada ao exercício de sua patente.
Deixado sozinho no sítio após sua tia ir visitar uma de suas filhas que estava doente, e depois abandonado pelos escravos que o serviam, passa a sentir, após alguns dias, um enorme vazio no silêncio daquele lugar. Desolado, se depara com sua imagem refletida no espelho de seu quarto e observa, pasmo, que o que vê se parece mais com uma sombra, uma figura difusa e de feições inacabadas. Aflito, em quase desespero, lembra-se da vestimenta de alferes que sua tia fez questão que ele trouxesse. Ao vesti-la, volta a se olhar no espelho e, daí, tem outra surpresa: sua imagem estava nítida, cristalina, como se estivesse voltando a ver depois de um breve momento de cegueira. Os dias passam e, na sua solidão, ele repete o gesto sistematicamente, sempre na mesma hora do dia, fazendo com que o tempo fluísse desapercebidamente.
A história termina, e seus amigos, boquiabertos, nem percebem que ele acabara de sair.
Lidando com as vicissitudes da natureza humana de maneira brilhante, Machado de Assis faz desse conto uma obra marcante e atemporal. Não pude deixar de me lembrar, inclusive, da obra-prima de Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray, também escrita na segunda metade do século XIX, só que 8 anos depois - enquanto O Espelho foi publicado em 1882, Dorian Gray foi publicado em 1890. Apesar de serem muito distintas tanto no gênero quanto no enredo, as duas tratam da dualidade da alma e dos perigos de nos perdemos em nossa própria vaidade. Enquanto para Dorian era um quadro que refletia a corrupção de seu espírito e o mantinha jovem e belo, para Jacobina era um espelho que refletia sua alma exterior e ofuscava seu verdadeiro eu. As duas, coincidentemente, foram publicadas originalmente em periódicos.
Notas sobre o autor: Machado de Assis (1839-1908) é um dos maiores representantes da literatura brasileira. Foi responsável por inaugurar o Realismo, que teve como marco inicial a obra "Memórias Póstumas de Brás Cubas", publicada em 1881. Machado deixou um conjunto vasto de obras. Foi contista, cronista, jornalista, poeta e teatrólogo, além de fundador da cadeira n.º 23 da Academia Brasileira de Letras.
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