CENA 1
Fazíamos parte de uma história policial de ação. Raramente saíamos de cena como agora, ainda por cima juntas.
— Você nunca pensou em deixar isto aqui? — perguntei jogando-me no chão exausta, fala entrecortada.
As sobrancelhas da detetive Maddox me advertiram da sua surpresa.
— Achei que esta pergunta viria, mas imaginei que não seria tão depressa — sorriu— Vocês, caracteres novos tem sido cada vez mais rápidos com esta ideia.
Ela parecia cansada, entediada do assunto.
— Pior ainda hoje, quando estamos no meio de uma investigação complexa, parte de um suspense ultra movimentado. Imagino que você saiba que não temos muito tempo para falar sobre isto. Logo voltamos a ação.
Baixei os olhos com um pouco de culpa.
— Sim, está claro, mas estou querendo ter esta conversa desde que começamos. Já entendi que não haverá um momento super tranquilo para falarmos sobre isto, assim resolvi que terá que ser nos curtos intervalos que temos.
Comissário de polícia Euclides, que estava na mesma história chega meio afobado porque acaba de sair de cena. Nos olha cansado e exclama:
— Foi duro hoje. Estas perseguições de carro me cansam muito, mas nosso autor adora. Acho que logo, logo é a vez de vocês.
— Ela perguntou hoje — comenta detetive Maddox olhando para mim. Euclides entendeu na hora.
— Era esperado — falou como se eu não estivesse presente. — Desde o primeiro precedente temos tido casos mensais. Mas é compreensível. Os caracteres estão cada vez mais voláteis. Não é culpa deles. É culpa dos leitores que querem sempre novos personagens. Antigamente os personagens perduravam por anos.
— Não é só isto — tomei a palavra — mas é que me sinto estranha com alguém definindo o que eu devo fazer o tempo todo. Vocês não se incomodam?
Comissário Euclides deu um suspiro longo.
— Acho que personagens da nossa geração não pensam mais nisto. Estamos há tantos anos neste negócio. Detetive Maddox?
Ela abriu os olhos claramente indicando que foi interrompida no seu transe passageiro. Era a forma que os caracteres descansam. Respondeu:
— Com certeza não iria. Neste meio tempo tenho um monte de fãs e nosso autor não vai me tirar do negócio nos próximos anos. De qualquer forma, seria difícil, para mim, sair — respondeu assertiva.
Estava claro para mim.
Gerações cresceram lendo as histórias do Detetive Maddox e seu companheiro Euclides imortalizadas no papel por Jorge dos Santos. Leitores ansiosos vistoriavam bancas de revistas em busca da indulgência literária semanal. Ambos haviam elucidado milhares de casos policiais para sua legião de fãs. Eu sabia disto através destes encontros fortuitos onde eles, como que por reflexo, detalhavam seu repertório. Sabia também que em função da pandemia o número de histórias sendo impressa estava redobrado, e as histórias estavam mais movimentadas de forma a absorver a monotonia de pessoas trancadas em casa.
— Até entendo que vocês se sintam assim. Mas nós, coadjuvantes temporários não temos esta mesma perspectiva — exclamei exasperada.
— Não saberia te dizer — comentou o comissário em voz baixa. — Sempre achei que se aparecer algum caracter forte, que realmente cresça no coração dos leitores ele poderia ganhar a sua própria série. Mas isto não tem acontecido até porque vocês já entram na história querendo sair, fazer outra coisa.
— O caso da detetive Miriam Paludo é assim — comentou Maddox. — Ela me acompanhou em algumas histórias nos anos 70 e desde os anos 80 tem uma série própria. Foi quando nosso autor resolveu colocar nomes mais brasileiros nas protagonistas. Meu nome é americanizado porque nos anos 60 se achava chique. Nasci antes da onda nacionalista do Jorge.
-- Quantos anos tem nosso autor? – perguntei interessada.
Euclides parou e olhou para cima, como quem faz contas.
— Ele nasceu nos anos 40, ou seja, já tem mais de 70 anos. Mas nossas histórias não são mais escritas por ele. Se aposentou. Ele tem uma equipe de escritores que continua imortalizando nossas histórias. Pertencemos à editora.
— Editora – repeti como querendo absorver esta palavra, sorvê-la. A palavra tinha gosto de amuleto.
— Sim, a empresa que detem os direitos sobre nós — explicou Euclides.
Mas eu já sabia.
CENA 2
Meu transe foi rápido. Era a minha hora de entrar em cena.
Estou em minha cama acordando. O quarto está às escuras e vejo um vulto se mover. No próximo segundo sinto uma mão forte tapando a minha boca. Sinto cheiro de um suor azedo e o homem me arranca da cama com um puxão violento.
Grito. As cobertas escorregam do meu corpo e vejo que estou nua. Esbravejo enquanto ele se coloca por trás de mim. Um braço enlaça meu pescoço e aperta. Meus olhos doem, meu coração acelera. O ar sai de meus pulmões em pequenos golpes interrompidos pela pressão na minha epiglote.
Um outro braço coloca uma faca imensa e ensanguentada perto do meu rosto.
— Se gritar mais uma vez, morre! — vocifera baixinho e sinto o cheiro de seu hálito pestilento, uma nota de álcool. Meu estômago embrulha.
Meu couro cabeludo oferece uma resistência inútil e sou carregada de volta para a cama pelos cabelos.
— Vou sair desta — penso — Não entrei em cena para morrer.
Sou jogada violentamente sobre a cama. Um joelho na minha barriga me faz urrar de dor.
— Quem é você? — pergunto, sem espontaneidade. O escritor tinha esta fala planejada.
Ele não responde. Seus dedos de unha roídas buscam algo dentro da mochila propositalmente deixada sobre a cama. Tento me libertar, mas o peso dele não permite que eu me mexa. Com a perna ele imobiliza meu corpo, a faca novamente a milímetros do meu rosto.
Vejo ele retirar lacres plásticos da mochila. Largou a faca para prender minhas mãos. Tentei morde-lo em vão. Ele era não só forte como experiente no que fazia. Com certeza eu não era a primeira vitima, e provavelmente não seria a última. O lacre se fechou sobre meus pulsos encaixando cada dentinho de sua superfície plástica, me imobilizando os braços.
Os olhos esbugalhados deste insano me olhando, totalmente indefesa, só me fazem pensar no maldito Jorge dos Santos. Ou sua equipe.
— Vai lá, Jorge — penso — me salva e me faz sua heroína na próxima história — Já me servia tê-lo feito mais fraco — continuo refletindo. — Mas criou um psicopata medonho, para poder descrever com seu talento macabro.
Ele usa um lacre semelhante para prender meus pés, apesar de todo meu esforço para impedi-lo. Assim que ele termina, pega a faca de novo e vejo um sorriso sinistro. Os dentes, incompletos, são amarelados e os olhos se estreitam visivelmente empolgados com o que está por vir. Ele passa a faca de fininho entre meus seios e vai descendo. A faca deixa um rastro de alguns milimetro de onde começam a brotar bolhinas de sangue minúsculas. Vejo o quanto este movimento o agrada e ele solta risinhos histéricos de quem está se deleitando. Um pavor vai subindo pelo meu corpo e só desejo sair desta cena bizarra o mais cedo possível.
Ele ergue a faca com suas mãos experientes e aproxima da minha garganta com um fervor de ritual. Sei o quanto é afiada pelo caminho deixado por ela em meu ventre sem que ele sequer fizesse força.
Fecho os olhos e...
Ouvimos o comissário Euclides arrombando a porta da frente. Este maluco detestável vê que não há alternativa, me solta e foge pela janela por onde entrou. Noto que a casa era baixa, térrea e moderna. Não conheço a casa, porque.. bem.. ela vem da cabeça do Jorge e não da minha.
Saio de cena tremendo dos pés a cabeça. Ainda presa, porque a minha libertação não foi descrita no livro.
O comissário Euclides que também saiu de cena me olha quase comovido, enquanto retira as amarras das minhas mãos e pés com uma tesoura.
— Obrigada por me salvar — comento esfregando as partes doloridas dos meus pulsos onde o maluco colocou os lacres de plástico, que agora vejo melhor. Eram destes que as companhias aéreas colocam nas malas se você pede.
— Agradeça ao Jorge — diz ele com um sorriso meio envergonhado — Não esqueça que só sigo ordens.
— O que aconteceria se ele tivesse resolvido que eu vou morrer?! — pergunto com ar indignado, depois de me acalmar um pouco. Na hora da cena isto não passou pela minha cabeça.
Comissário Euclides e detetive Maddox se olham de forma cúmplice. Me deu a impressão que não era a primeira vez que eles respondiam a esta questão.
— Bom... — disse Euclides com olhos fechados como se não quisesse me olhar durante a resposta. — Aí você está fora do livro.
Penso no que isto significa e coloco:
— Bom, então que bom que o Jorge não quis que eu morresse...
Detetive Maddox me olha com pena.
— Isto assumindo que você entra em cena de novo – comenta.
Esta ideia também não havia me ocorrido.
— Posso não entrar em cena de novo? – respondo quase histérica.
Detetive Maddox me olha espantada, como se eu estivesse estranhando uma obviedade.
— Mas eu quero. Quero entrar lá e atacar este psicopata sangrento que quase acabou com minha vida — Levanto a voz.
Maddox e o comissário Euclides de olham e ele formaliza:
— Agora há pouco perguntou se não pensamos em deixar isto aqui... Enfim... Esta decisão é do Jorge, ou melhor, da equipe dele — me olha diretamente nos olhos e sorri. Quase penso que vi uma ponta de sarcasmo.
— E o que acontece comigo se eu não entro em cena de novo? — pergunto.
Detetive Maddox e o comissário são chamados para a cena, sem sequer terem tempo de responder. Fico ali, sozinha.
— Onde estarão os outros personagens? — penso.
Olho para mim e me vejo cinza. Pareço estar apagando. Sinto tonturas.
— Hey, Jorge! — tento balbuciar. — Sou um carácter forte. Me bota lá de volta. Vou acabar com este psicopata. Quero ser a heroína da próxima história.
Minha cabeça está zonza. Fecho os olhos.
A equipe do Jorge decidiu que não existo mais.
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