Mil anos de história romana
Conhecer a história da Roma Antiga, desde sua fundação até a era dos Imperadores, é aprender com o passado e sobre nós mesmos. Para os povos latinos, dada à forte influência romana em suas línguas e culturas, talvez isso seja ainda mais importante. Mesmo dois mil anos depois, conseguimos ver muito do mundo ocidental de hoje nas disputas políticas e diferenças sociais que fizeram parte da formação de um dos maiores Impérios que o mundo já conheceu.
SPQR, abreviação de "Senatus PopulusQue Romanus", ou "O Senado e o Povo de Roma", é a história do primeiro milênio da cidade e do Império que surgiu a partir dela. A autora, Mary Beard, passou mais de 30 anos pesquisando sobre o Império Romano, e sua obra é resultado de sua paixão pelo tema. Mas mesmo sendo uma profunda estudiosa da Roma antiga, ela nos alerta para sempre ficarmos atentos para o outro lado da história, e é justamente sobre isso que se baseia parte do argumento de todo o livro. Somos sempre instados a questionar os documentos, cartas e dados arqueológicos que podem ter sido influenciados pela narrativa enviesada dos vencedores e dominados.
Beard começa seu livro com os famosos discursos de Cícero contra o suposto revolucionário Catilina no Senado Romano em 63 a.c., para depois voltar no tempo e discorrer sobre os mitos e histórias acerca da fundação de Roma em 753 a.c. e seguir novamente em frente até parar em 212 d.c.. Mas por que começar logo com esses discursos? Para enfatizar que foi somente a partir do século I a.c. que os escritores romanos começaram a estudar e registrar os séculos anteriores de sua cidade, e que só podemos começar a explorar Roma de perto, e com detalhes, a partir desta época. Além disso, os discursos de Cícero foram amplamente descritos nos anos seguintes e usados como modelo para conflitos políticos. A famosa primeira frase do seu discurso de abertura, "Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia evaa?" ou "Por quanto tempo, Catilina, continuará abusando de nossa paciência?", ainda está presente na retórica política do século XXI.
A República Romana, ou Res Publica, como a conhecemos, foi formada por volta do século V a.c., um pouco mais de 200 anos após a fundação da cidade. Mas segundo a autora, não há como determinar uma data específica, pois provavelmente sua formação se deu lentamente ao longo de um período de décadas, quando não de séculos. E foi reinventada várias vezes. O que é interessante notar no livro é a quantidade de registros arqueológicos que mostram uma série de agitações populares, violência e conflitos políticos tanto antes quanto após a formação da República e que, mesmo assim, mantiveram Roma crescendo e prosperando.
Para Beard, os mitos modernos de que os romanos eram beligerantes e conquistadores são questionáveis. Apesar de valorizarem a bravura e o sucesso em combates, os romanos não eram muito diferentes dos vizinhos italianos. Em relação às conquistas, os romanos viam sua expansão mais em termos de relações mutáveis com outros povos do que em termos de controle de território - o domínio romano era predominantemente sobre povos e não sobre lugares.
Consumida aos poucos pela corrupção, a República foi ficando cada vez mais instável. A vulnerabilidade do Senado à propina (qualquer semelhança com as instituições políticas atuais não é mera coincidência) era um grande fator para o fracasso. "Roma é uma cidade à venda e fadada a cair tão logo encontre um comprador", foi o comentário sarcástico que supostamente teria sido feito por volta do final do século II a.c. pelo rei Jugurta da Numídia.
Não há também uma data precisa para o fim da República e o início do Império, mas a guerra civil entre Júlio Cesar e Pompeu, que se iniciou em 49 a.c., foi o evento que acabou desencadeando a eleição de Cesar como "dictator in perpetuum" em 44 a.c.. Mas foi Otaviano, sobrinho-neto de Cesar e nomeado oficialmente Augusto (um título equivalente a reverenciado) em 27 a.c., que pode ser considerado o primeiro grande imperador romano. Como imperador, transformou as estruturas da política e do exército romanos, o governo do Império, a aparência da cidade de Roma e o sentido subjacente de poder, da cultura e da identidade em Roma. De forma inteligente, ele disfarçou seu poder absoluto com a legalidade, transformando o Senado em algo mais próximo de um braço da administração a serviço do Imperador ao invés de uma instituição com autonomia política. Não muito diferente das autocracias modernas.
A narrativa do livro, por não ser exatamente linear, pode soar estranha a quem está habituado com o sequenciamento cronológico dos livros de história tradicionais. Além disso, por colocar em dúvida os próprios registros históricos, nos mostra que não é fácil compreender as transformações ocorridas durante o período abordado. O dia a dia do romano comum e mesmo o ponto de vista dos povos dominados carecem de registros precisos e, como já mencionado, é a versão dos vencedores que predomina. A própria diferença entre ricos e pobres e o próprio conceito de liberdade não podem ser vistos sob uma lente moderna. Assim como a ambição dos escravos romanos, em geral, era ganhar a liberdade e não abolir a escravidão como instituição, também a ambição dos pobres não era reconfigurar radicalmente a ordem social, e sim encontrar um lugar mais perto do topo das hierarquias da riqueza.
O livro termina com um fato que marcou profundamente a história romana: a concessão de cidadania a todos os habitantes do Império em 212 d.c. pelo Imperador Caracala - estima-se que mais de 30 milhões de pessoas foram contempladas nessa época. Foi uma decisão revolucionária, que eliminou da noite para o dia a diferença legal entre governadores e governados, e foi também a culminação de um processo que vinha em marcha havia quase um milênio. Era o fim de uma era, mas não o início de uma igualdade pacífica multicultural, mas de uma distinção, formalmente definida na lei romana, entre a elite rica (os mais honoráveis, honestiores) e a classe inferior (humiliores). Distinção esta comum a todas civilizações ocidentais que vieram depois dela.
Você provavelmente nunca mais verá o Império Romano da mesma forma depois de SPQR. É uma história marcada por mitos e fatos históricos, violência e progresso, cultura e dominação. Aos poucos, vamos descobrindo que temos muito mais em comum com eles do que pensávamos, mesmo há dois milênios de distância.
Editora : Crítica; 2ª edição (18 dezembro 2020) - 576 páginas. Você pode comprar o livro na Amazon clicando aqui. Também disponível para Kindle.
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